Um tabu que resiste em Baku
Quatro poles e nenhuma vitória. É isso que torna a relação de Charles Leclerc com o GP do Azerbaijão tão intrigante. O monegasco sempre voou em volta rápida nas ruas de Baku, mas o domingo insiste em lhe virar as costas. Em 2025, nem a pole veio: um sábado caótico, com seis bandeiras vermelhas e chuva indo e voltando, terminou em batida no Q3 e uma largada apenas em 10º no grid. Na outra ponta, Max Verstappen cravou a pole, Carlos Sainz surpreendeu com a Williams em 2º e Liam Lawson colocou a Racing Bulls em 3º — um pódio provisório de sábado que já diz muito sobre o grau de imprevisibilidade do fim de semana.
Leclerc não escondeu o incômodo. O fim de semana começou estranho, com a Ferrari difícil de “ler” no acerto e um carro que não respondia como de costume nesse circuito. Ele tentou uma correção pesada antes do quali — mudanças grandes de ajuste para resgatar confiança no miolo do traçado, especialmente no trecho estreito do setor 2. O efeito colateral apareceu na temperatura dos pneus médios: ficou mais complicado colocá-los na janela ideal. E quando você precisa de volta de aquecimento caprichada, mas o cronômetro é fatiado por bandeiras vermelhas e pista úmida, tudo vira loteria.
A sequência de poles de Leclerc em Baku era um dos números mais impressionantes da carreira dele. O circuito tem um perfil que casa com sua coragem em freadas fortes e sua precisão nas curvas de baixa. Ao mesmo tempo, a pista mistura um setor 1 e 3 de altíssima velocidade com o miolo travado do setor 2, exigindo um acerto que parece feito para dar errado: você busca eficiência aerodinâmica nas retas, mas precisa de carga e tração na parte mais lenta. É um cabo de guerra que pune qualquer passo em falso — especialmente quando o clima entra no jogo e faz a aderência desaparecer e voltar em minutos.
O golpe final veio no Q3. O primeiro tiro do monegasco, ainda com a pista em processo de evolução, terminou no muro. A batida provocou bandeira vermelha e encerrou a chance de qualquer tentativa séria de voltar ao topo. Leclerc assumiu o erro sem rodeios. Do box da Ferrari, sobraram planilhas para entender o balanço de risco e a reação do carro nos pontos críticos, como a curva 15 — local clássico de sustos quando o vento muda de direção e empurra a traseira.
Do outro lado da garagem, Lewis Hamilton também penou. Eliminado no Q2, o heptacampeão larga em 12º, o que amplia a sensação de um sábado abaixo do que a Ferrari esperava. A equipe carrega uma dupla forte, mas em Baku a força da marca não basta. Entre bandeiras, chuva traiçoeira e janelas de temperatura apertadas, o time italiano ficou sem a margem de manobra que costuma usar para arrancar uma volta limpa na hora certa.

O sábado que virou a mesa — e o que esperar no domingo
A classificação de 2025 entra fácil na lista das mais quebradas de ritmo dos últimos anos. Foram seis interrupções, a pista mudou de aderência várias vezes e o relógio psicológico dos pilotos — aquele timing de aquecimento, espaço de pista e confiança — ficou todo bagunçado. Nesses cenários, Baku costuma premiar quem minimiza danos: manter o carro longe do muro, aceitar uma volta com menos risco e acertar a saída dos boxes na hora exata. Verstappen conseguiu. Sainz capitalizou o bom arrasto da Williams com acerto de baixa carga e Lawson surfou no caos com consistência.
Por que Leclerc sofre tanto no domingo no Azerbaijão, mesmo sendo tão rápido no sábado? Há um pacote de motivos, e todos conversam entre si. Primeiro, a natureza do circuito: a reta principal é gigante, o vácuo é muito forte e o pelotão tende a formar trens de DRS. Se você larga na frente com um acerto voltado para volta rápida, pode virar presa fácil de quem poupa motor e pneus no seu vácuo até o momento certo. Segundo, a chance alta de Safety Car e VSC — a maioria das corridas na cidade velha teve neutralizações — quebra qualquer plano linear de estratégia. Terceiro, a janela de pneus costuma ser curta. Se o time não acerta a leitura do piso e da temperatura do asfalto, o carro perde apoio e fica suscetível a erros perto do muro.
A Ferrari tentou atacar a raiz do problema mexendo no acerto antes do quali. Funcionou em parte, porque o carro ficou mais vivo e reativo nas mudanças de direção. Mas abriu a ferida da temperatura nos médios. Sem aquecimento ideal, você perde confiança nas frenagens mais cedo, e no setor 2 isso é o bastante para tirar décimos preciosos. Some a isso a pista resinada por trechos molhados e a sequência de paradas longas por bandeiras vermelhas, e a tal “volta perfeita” escapa fácil.
Mesmo assim, o domingo ainda oferece um caminho. Largar de 10º em Baku não é sentença. As retas largas e as longas zonas de DRS permitem ganho por ataque e por estratégia. A chave é evitar danos na primeira volta, abrir espaço para o undercut ou overcut quando o pelotão naturalmente se espalhar e guardar pneus e motor para a segunda metade. Em Baku, quem chega inteiro ao último terço da prova, com borracha fresca e top speed competitivo, fica perigoso.
O topo do grid também traz histórias. Verstappen costuma crescer quando tem pista livre e ritmo de corrida sólido. Sainz, de Williams, é um elemento novo: a equipe evoluiu no acerto de baixa carga e tem um carro eficiente no arrasto, mas ritmo longo e gerenciamento térmico serão testados sob pressão. Lawson, em 3º, tem a faca e o queijo para somar pontos grandes se mantiver cabeça fria na dança das relargadas. No meio, a McLaren e a Mercedes podem influenciar a vida de Leclerc se controlarem a janela de pit stops e formarem DRS trains.
Há ainda os detalhes que fazem Baku ser Baku. O vento canalizado entre os prédios muda de direção ao longo da tarde e afeta a traseira nas curvas 15 e 16. A freada da curva 3 pega quem exagera no vácuo e perde referência. A muralha do castelo exige respeito — um toque mínimo vira suspensão torta. E o pit lane, apesar de longo, costuma ser palco de decisões ousadas quando um Safety Car aparece no meio da janela de pit. Quem hesita, perde o bonde; quem arrisca demais, volta preso atrás de tráfego indesejado.
Para Leclerc, o desafio é psicológico e tático. Esquecer a batida do Q3, parar de lutar com o carro e focar em ritmo de corrida. Baku premia quem pensa a prova por blocos: ganhar duas posições no primeiro stint, mais duas com a estratégia, e guardar o ataque final para depois da volta 40 se a degradação permitir. A Ferrari precisa calibrar a asa traseira para equilibrar velocidade de reta e estabilidade nas curvas lentas, sem sacrificar tração na saída do setor 2. E torcer para que o carro não tenha danos ocultos da batida: qualquer troca não programada de câmbio ou componentes pode custar posições — ou até penalidades — se algo for detectado próximo da largada.
Do ponto de vista de pneus, o desenho mais provável passa por médios e duros, com brecha para um stint curto de macios se entrar Safety Car em momento perfeito. O ponto crítico é não cair na armadilha do aquecimento: com temperatura ambiente mais amena e rajadas de vento, os médios podem demorar a “ligar”. Quem acertar o out-lap — sem exagerar e sem ser conservador demais — ganha metade da briga antes mesmo da primeira abertura de asa.
A Ferrari também terá de gerenciar a tarde de Hamilton. Largando em 12º, o britânico precisa de pista limpa para não gastar pneus lutando contra carros que andam em ritmo parecido. Se o time dividir estratégias — Leclerc espelhando a frente, Hamilton buscando um offset de compostos —, aumenta a chance de um deles cair no lugar certo quando o caos inevitável aparecer. Em Baku, planos A, B e C costumam conviver com o “plano Safety Car”, que interfere em tudo que foi desenhado no briefing.
O retrato final do sábado deixa pistas para o domingo:
- O acerto de baixa carga pagou dividendos para quem conseguiu aquecer pneus na hora certa.
- DRS train deve ditar a dinâmica do pelotão do 4º ao 12º lugar; paciência e janelas de undercut serão vitais.
- A probabilidade de neutralizações segue alta; manter pneus e freios dentro da janela em relargadas pode valer posições grátis.
- Ferrari precisa de um carro íntegro pós-batida e decisões rápidas no pit wall para evitar ficar “presa” atrás de rivais de ritmo semelhante.
Se existe um lugar em que um tabu pode cair por pura teimosia do destino, é Baku. Leclerc já provou que é o piloto mais afiado em volta lançada nas ruas do Azerbaijão. Falta transformar essa velocidade em controle de variáveis no domingo — e isso, aqui, significa sobreviver às primeiras voltas, ler o vento, acertar a janela dos pneus, usar o vácuo a favor e, quando a confusão aparecer, estar no lugar certo, na volta certa. O resto, Baku resolve.